quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Areia na farofa



                                               a Sebastian Wehle



O ano de novo
acaba e o cansaço
não finda,
finca-se, é o mesmo.
Em verdade aumenta
a inflação, os juros
acumulados de bancos,
as cáries, os nomes
bloqueados na Rede.

Mais uma vez, a ressaca
de 1° de janeiro
dará a sensação talvez
de tabula rasa
mas será só o puxar
da toalha
à mesa, os víveres
salpicando os azulejos.
Da forma como a fome
ainda rege o estômago
após a meia-noite,
que não reabastece,
automática, as veias.

E este nhoque
está uma inhaca,
esta farofa, um'areia,
e melhor seria ser eu
o peru recheado.

Vêm os comerciais,
asseguram competir
ao calendário
novo me ressarcir,
contudo esse reveião
à minha revelia
não mais
me engambela,
nem sequer engano
a mim mesmo
com minhas resoluções,
só serão menos
os  cigarros
porque o bolso
ganhou outro buraco.

Mas cumpro os rituais.
Pulo as ondas,
visto-me de branco,
dou os abraços
e faço as promessas
de mais telefonemas,
mais encontros
e mais cinemas,
mais concertos
com mais sorrisos,
mais café e vinho,
oxigênio compartilhado
entre as mesmas quatro
paredes, celebro o Bebê
Mágico e lanço ao mar
oferendas à Rainha,
que as devolve,
é de seu praxe.

Então saio às ruas
e os prédios
ainda são os mesmos
se não os preços,
caminho
com os braços
despencados
ao longo do torso
sob o torcicolo,
e se as mãos balangam
ao léu das pernas
é só para que o corpo não
caia.

E quiçá esta fosse
a solução, a mudança,
o vero ano novo,
a única resolução séria,
cair
na sarjeta, no meio-fio,
na contramão, na ciclovia
atrapalhando Haddad
ou Merkel,
cair,
que ação de coragem!,
cair feito o mercado
de ações
e não se levantar mais.

É isso. É? Porque
se eu gritasse, alguém
daria por certo a ordem
e mandaria de novo a mensagem
de que a minha voz
já cansou a beleza dos anjos.







Berlim, 23 de dezembro de 2015.



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quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Politicamente... correto ou consciente?


Tive uma conversa com um poeta que respeito imensamente, mas do qual discordo em quase tudo, sobre a questão do "politicamente correto" quando se trata da literatura. O que segue abaixo é uma versão de uma das minhas respostas à conversa, porque talvez interesse a outros.

A questão para mim é saber diferenciar entre o politicamente correto e o politicamente consciente, já que por trás da batalha contra o "politicamente correto", em muitos casos, sinto na verdade uma batalha contra o "político" e contra o "histórico" na literatura. Quando se começa a falar sobre isso, sinto com frequência mais uma tentativa de retorno a uma ideologia que tem muitos nomes, mas que pode ser sentida a partir de Hugo Friedrich em sua Estrutura da Lírica Moderna (1956), por exemplo, e que no nosso fin de siècle passado mostrou-se no mumble jumble que transformava em sinônimos conceitos como "sincronia histórica", "pós-utópico" e "trans-historicidade".

Falamos sobre trabalhos que tiveram a coragem de olhar o "Mal", ou "O Horror" de Mistah Kurz, nos olhos. Citamos textos como o Niemandsrose (1963), de Celan. Celan foi um autor que lidou com um Horror histórico, real, que tinha contexto, nomes de gente de carne e osso. E não há aqui mesmo, nas Américas, um Mal e um Horror que precisam ser olhados nos olhos, que ainda estão entre nós e formam a fábrica de nossa sociedade, como os genocídios indígena e africano no nosso continente?

Elencar trabalhos que estejam lidando com este Mal ajudaria? Não sei. Será que nós teríamos reconhecido o "Niemandsrose", tivéssemos sido contemporâneos de sua escrita?

Falemos por exemplo de uma das grandes faces do Mal em nossa doentia civilização ocidental: o sequestro e escravização de milhões de seres humanos do continente africano. Há o livro Zong! (2008), de M. NourbeSe Philip, que olhou este horror de frente. O livro é baseado no fato real do navio Zong e num processo jurídico de 1781, quando aquele navio negreiro lançou ao mar cerca de 140 homens e mulheres africanos, que teriam sido vendidos como escravos, porque os traficantes perceberam que ganhariam mais dinheiro coletando o "seguro da carga" que "a vendendo". O Mal. O Horror. Eis um exemplo de uma autora, mulher negra nascida em Trindade e Tobago, lidando com um dos capítulos mais malévolos da História das Américas. Sem pestanejar e sem recorrer ao esconderijo do sublime.

Há também La sodomía en la Nueva España (2010), de Luis Felipe Fabre, no qual o autor, homem homossexual nascido no México, parte dos arquivos da Inquisição Mexicana, quando homossexuais foram queimados em praça pública na Cidade do México, para compor um livro extraordinário em "retábulos" e "villancicos", conhecedor que é das formas mais sofisticadas do Barroco hispânico.

Dois exemplos, que leio com uma atenção de quem compartilha oxigênio com estes autores do nosso continente e sente a necessidade de lidarmos com a face do NOSSO MAL, em vez de fazer como muitos, que leem Paul Celan como uma espécie de "poeta órfico", e não como o poeta eminentemente histórico que é, recebendo hoje o tipo de atenção que Rilke recebeu no país pelo Grupo de 45.

Portanto, eu pergunto: o terrível destino dos homens e mulheres que pereceram na Shoah, judeus, atinge-nos a todos, mas o terrível destino dos homens e mulheres que foram lançados ao mar, na embarcação Zong, sendo negros, antige-nos a todos ou apenas aos negros? O terrível destino dos homens homossexuais que foram queimados em praça pública na Cidade do México atinge-nos a todos, ou apenas a homossexuais?

Qual é a fronteira do universal, se o há?

Ao escreverem estes dois livros que julgo excepcionais, mas com clara intenção também de intervenção histórica e política, a escritora (negra) M. NourbeSe Philip e o autor (homossexual) Luis Felipe Fabre estavam sendo apenas politicamente corretos, ou politicamente conscientes? Faria sentido estudar estes livros apenas por suas óbvias qualidades formais, mas ignorar o contexto de que tratam e o contexto em que foram escritos? Não lidaram com o Mal? Seriam mais universais se tivessem escrito sobre as ansiedades do homem branco heterossexual em meio ao Sistema Capitalista? Em meio a regimes comunistas? Se tivessem sido menos "históricos" e "contextuais"? Mas a poesia de Paul Celan não é ela toda também "histórica" e "contextual"?

Reafirmo que é preciso dar atenção ao trabalho formal do autor, mas não parar aí: entender a maestria formal de um poeta mas também seu contexto histórico, e saber distinguir o "politicamente consciente" do "politicamente correto". E que, para entrar nesta discussão, se conheça poesia de forma ampla, não apenas a que foi feita por homens (brancos) (heterossexuais) (ocidentais) (mortos).

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quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Medo dessa gente

Eu tenho medo é dessa gente branca de bem – bem pensante, bem vestida – que se acha no direito de dar socos na cabeça de um menino de não mais de 12 anos, em plena praia, gritando "tem que metralhar! nesses tem que dar é tiro na cabeça!", os diplominhas chacoalhando de seus pescoços, as carteirinhas de clube de campo feito penduricalhos em seus lóbulos, enquanto bradam pela decência na República. O ódio em seus olhos. Eu tenho medo é dessa gente.

E alguns amigos disseram que não se deveria temê-los. Mas eu temo. Como escreveu Ricardo Aleixo, conheço essa gente "pelo cheiro,  // pelas roupas, / pelos carros, // pelos aneis e, / é claro, // por seu amor / ao dinheiro", e olho ainda para trás na Hitória do país e vejo do que esta gente já foi capaz, do que esta gente ainda é capaz. É a gente branca de bem que saiu às ruas pela Tradição, Família e Propriedade, que proveu a base popular do Regime Militar. 

Muitos têm se referido ao "ovo da serpente" por certos acontecimentos na República, mas falar em ovo é enganador, pois leva a crer que a serpente não chocou, que não quebrou ainda as paredes brancas do ovo. Pois a serpente está entre nós, sempre esteve entre nós, enrola-se entre nossas pernas. Há séculos? Há décadas?. Os fascistas brasileiros mais estão para um urso, um urso ainda que sarnento, um urso que hiberna e acorda a intervalos regulares, sempre que estamos prestes a chegar à primavera.

Esse medo, unido sim ao nojo, é o que deve nos manter alertas, é o que deve nos lembrar que esta gente não se subestima. Subestimar do que é capaz esta gente é um erro.

Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor? Diante dos últimos acontecimentos, preferiria que não.

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terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Tributo a Raoni Metuktire, com Bell Dome (Nelson Bell & euzinho)




Bell Dome (Nelson Bell + Ricardo Domeneck), homenagem a Raoni Metuktire, liderança contínua em meio as intermitências interesseiras da República.

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sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

A simetria do terror no Brasil




Ontem, conversando com Adelaide Ivánova em minha cozinha, falávamos sobre o massacre incessante dos cidadãos negros da República. Tantos meninos. A foto daquele pai negro chorando. O massacre de índios, mulheres, homossexuais. Falamos do número de tiros contra aqueles 5 garotos desarmados. 111. Cento e onze tiros. Quando disse o número em voz alta, percebi o que não havia percebido antes ao ler o número: é o mesmo número de mortos do Carandiru. Postei ontem: a simetria do terror no Brasil.

Quando passavam imagens do Carandiru ou outro presídio na televisão, minha mãe sempre repetia a mesma frase: "Isso aí é lugar onde filho chora e mãe não ouve." A imagem daquele pai negro em pranto, pai negro de um menino negro morto com 111 tiros enquanto celebrava seu primeiro salário. O Brasil é o lugar onde mãe chora e filho não ouve mais. Fui para a cama com este número na cabeça. 111. 1 + 1+ 1. Não. 1 – 1 – 1. Como naquela passagem de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis, na qual Brás Cubas imaginava:

"... um velho diabo, sentado entre dous sacos, o da vida e o da morte, a tirar as moedas da vida para dá-las à morte, e a contá-las assim:

-- Outra de menos... 
-- Outra de menos... 
-- Outra de menos... 
-- Outra de menos..."

Este velho diabo será muito mais nosso Estado, que jamais se descolonizou em suas estruturas e ideologias, apenas trocou o passaporte do gerente da máquina de moer gente. O velho diabo não conta moedas, senta-se entre dous sacos, o da vida e o da morte, a tirar negros, índios, mulheres e homossexuais da vida para dá-los à morte, e a contá-los assim:

-- Outro de menos... 
-- Outro de menos... 
-- Outro de menos... 
-- Outro de menos...

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quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Nova peça sonora: colaborando com Nelson Bell

O produtor alemão Nelson Bell (Crooked Waves / Gully Havoc Rec.) e eu começamos a colaborar em algumas produções. Estamos chamando o projeto de Bell Dome. Vai aqui a primeira.



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terça-feira, 1 de dezembro de 2015

"Uma anônima na lama da Samarco dirige-se aos todavia vivos"


Nunca mais alvo
de cupidos

largada em decúbito
lateral dorsal ventral

o corpo submergido
na lama
da Samarco da Vale

do finado Rio Doce

sem vestido
de organdi azul

Tragédia Brasileira
ó pleonasmo

sem o azul
de água ou céu

sou só
outra

sem voz
anônima

negra
em lama
anônima

como outra
lama abaixo

outra anônima


do povo
Hydromedusa tectifera


na mesma lama

morta com seus ovos
morta com meus ovos

eu, fêmea anônima

do povo
Homo sapiens

ela, cágado e fêmea
sem voz

hidromedusa
que não nos
petrifica

os machos
que se dizem
nascidos do barro

mas somos nós
de Gaia adornada

em água limpa

com que doamos
o lago primordial

no qual nadam
todos

os úteros
as lagoas

com fronteiras
nos ventres

nós todas
bestas de carga

nesta República
de pó e hélices

onde água falta
mas não a lama

nossa falta que lama

caídas
nesta guerra

os humanos
contra todos
os anônimos

do povo
Homo sapiens

do povo
lambari

do povo
cágado

vem, hidromedusa!

até que todos
os povos

encontrem-se

graças
a esta guerra

de todos
contra todos

com o povo
minoico

com o povo
olmeca

com o povo
neandertal

com o povo
mamute

e outros
os outros

extintos


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